Conto 3 - Instinto Materno



                Com o olhar triste, ela parou por um instante admirando a fachada de azulejos decorados ao bater aquela porta pela última vez. O cocheiro empilhava suas malas na charrete que a levaria de volta à casa de sua mãe. Confusa e sem imaginar o que o destino a reservava, viajou com a mente anuviada tentando bloqueá-la de qualquer pensamento que não fosse o marrom reconfortante da longa estrada de terra ladeada por imensas árvores verdes.
                A pequena Paula em seus braços, ainda inconsciente da herança involuntária, mexia os bracinhos euforicamente contraindo os músculos da face em sorrisos inocentes só para voltar a mastigar as delicadas mãozinhas como se fossem as mais saborosas guloseimas existentes no universo.
                Não queria ter deixado a casa. Mais um golpe obscuro do acaso transformava sua vida em um triste arremate.
               A recente perda do marido, que fora levado à loucura e por fim ao suicídio devido ao ciúme de Antony, derrubou todas as expectativas de felicidade que um dia Maria pudesse ter tido, e como se não bastasse, ela fora escorraçada da residência pelos familiares do falecido.
Eles a culpavam pelo desequilíbrio mental de Paulo, que antes do casamento jamais chegara a apresentar indícios de insanidade.
              O sacudir embalador da carruagem levou o bebê a um sono tão profundo que Maria se emocionou. As lágrimas pingando no corpinho da menina demonstravam a certeza de que o pequeno ser adormecido em seus braços seria apenas mais uma alma perdida em busca do paraíso.
       E lá estava ele, Antony, uma aparição semitransparente sentada bem a sua frente vislumbrando a sua dor.
                – Fique longe dela, espírito imundo! – Maria disse com rancor, apertando a pequena Paula contra o peito como se pudesse protegê-la.
                – Você pode ter tudo o que quiser, basta me aceitar.
                – Eu jamais aceitarei você em minha vida, Antony. – Falou quase sussurrando mergulhada na desesperança.
                – Pois bem, minha querida. – Antony rebateu franzindo o cenho fantasmagórico. – Você tem muitos poderes concedidos por mim, mas eles não serão suficientes quando em agonia não for capaz de usá-los. Você vai desejar a minha presença, vai clamar pela minha ajuda e recordando o seu desprezo eu não lhe atenderei.
                – Você matou o meu marido, abusou da minha confiança e transformou minha vida num inferno. Eu jamais o aceitarei, Antony e quero que fique longe da minha filha! – o tom de voz mais elevado despertou a atenção do cocheiro, que muito rapidamente espiou por cima dos ombros ignorando a pobre mulher que discutia com um bebê recém nascido.
                – Não seja injusta. – Antony retomou. – Ela é nossa filha. Como pede a um pai que fique longe de sua filha?
                – Ela não é sua filha, Antony! É filha de Paulo, o homem que você enlouqueceu e matou!
                – Está enganada, Maria. A alma de Paulo estava bem longe quando nós a concebemos. Assim como você é minha filha com Manoela, Paula é minha filha com você.
                – Quero que queime nas profundezas do inferno, seu espírito maldito e inescrupuloso!
Com a raiva crescendo a ponto de não ser mais contida, Antony desapareceu dando lugar a inúmeras nuvens negras que brotavam do céu espocando raios e trovões furiosos precedendo a tempestade.
                Uma depressão na estrada causou o tombamento da charrete no mesmo instante em que o cocheiro fora atingido por um raio luminoso.
Assustado, o cavalo relinchou levantando as patas dianteiras e disparando pela estrada com a carroça declinada sem poder livrar-se das amarras que o atavam ao eixo.
                Maria envolveu a pequena Paula enquanto era arrastada com os braços queimando em atrito com a terra. Um tronco no meio da estrada fez com que o cavalo pulasse suspendendo a charrete e expelindo mãe e filha, que rolaram alguns metros pela lama até serem barradas violentamente por uma árvore ao lado da estrada.
                O choro de Paula invadiu-lhe os ouvidos como um baque de alívio e revolta. Examinou minuciosamente cada parte do corpinho frágil e constatou que apesar dos arranhões, o bebê não havia sofrido contusões mais sérias graças a sua competência em suportar a dor e manter a criança apertada contra o peito.
                – Maldito! – Gritou enquanto a chuva confundia-se com as lágrimas. – Eu o odeio criatura dos infernos!
                Maria levantou-se e começou a percorrer o caminho de volta, pois este era mais curto do que alcançar o próximo vilarejo a oeste. Precisava prestar socorros à pequena Paula o mais breve possível.
                Passou pelo corpo chamuscado do pobre cocheiro. Retorcido e escuro como um amontoado de lenha queimada. Fios de fumaça emergiam dissolvendo-se na chuva que tornava ainda mais assustadora aquela visão do inferno.
                No lombo de um cavalo, um senhor vinha a galope. Com um chapéu de abas largas e capa de couro preta, enfrentava a estrada barrenta com pressa de chegar a algum lugar.
                Ao ver Maria com a criança, diminuiu a velocidade até parar por completo diante dela.
Maria explicou sobre o acidente e o homem gentilmente se ofereceu para ajudá-la.
                Na garupa do cavalo, Maria e sua filha foram levadas a um tipo de taberna. Era o único estabelecimento em quilômetros e oportunidade para que Paula fosse seca e alimentada.
                A ausência de presenças femininas no local deixou Maria alarmada. Nem mesmo uma meretriz compunha o ambiente apinhado de homens feios.
                De repente o gentil cavaleiro já não era mais gentil. Arrancou Paula de seus braços com um sorriso medonho.
                Maria gritou desesperada tentando retomar o seu bebê, mas em menos de um segundo foi cercada por uma multidão de homens maus. Eles a seguraram rasgando a sua roupa e a atirando sobre a mesa.
                Apavorada, mais por sua filha do que por ela mesma, nada pôde fazer enquanto o corpo era violado por cada um daqueles monstros.
Antony dava gargalhadas. “ Use o seu poder” – Ele dizia irônico. “Vamos, você pode acabar com todos eles, basta querer”
                Maria soluçava e se negava a obedecer ao espírito.
                “Você quer que façam o mesmo com a nossa filha? Você ainda pode salvá-la se parar de ignorar os poderes que eu te dei.”
Só de pensar que poderiam machucar o seu bebê, Maria foi impregnada por uma fúria tão intensa que a única saída era seguir os conselhos do maldito Antony.
                Por baixo das abas do chapéu do homem que a violentava, um rosto tão enrugado que parecia um saco de papel amassado só fez aumentar a sua ira.
Sem alternativas, começou a pronunciar as palavras que há muito estivera evitando:

“Eu, uma filha da magia
Rogo aos sábios protetores;
Concedam-me o poder
Das forças da natureza

Bolas azuladas de energia se formaram em suas mãos. Os olhos tomaram a cor alaranjada do fogo e ela continuou com a voz firme e mais elevada enquanto todos se afastavam amedrontados.

Como legítima Montessales
Eu domino os quatro elementos
E neste instante em que preciso
Uso o dom que me pertence”

                Maria juntou as bolas de energia de modo que se fundissem tornando-se uma só. A coloração azulada deu lugar ao vermelho vivo do fogo, ganhando mais volume conforme abria os braços lentamente. A grande bola flamejante irrompeu todo o recinto derrubando os agressores como pinos de boliche.
                As chamas lamberam as paredes de madeira e logo alcançariam o vasto estoque alcoólico do pulgueiro.
                Maria correu em busca da filha e escapou da taberna segundos antes da grande explosão.
                Antony cuidou para que nenhuma testemunha saísse de lá com vida, preservando assim a identidade do responsável pela catástrofe e evitando que Maria fosse suspeita de heresia.
Ele estava saltitante de felicidade e orgulhoso de sua bruxa, porém não a perdoara pelas rudes palavras dirigidas a ele mais cedo naquele dia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário